quinta-feira, 30 de julho de 2009

Noélia Lúcia


Minha avó sabe toda a história, em seus pormenores trágicos. Mas minha avó nunca foi dada a tragédias, ou melhor, sempre riu delas para vivê-las com completo escárnio, tamanho ceticismo diante da existência. Claro, dessa tragédia específica não ria, apenas me contava como se constata a possível gênese de um destino que se desviou. O destino de mãe. É aquela velha história da Lapa do Bom Jesus, do Bom Jesus da Lapa, que, tanto faz as denominações, é o mesmo lugar.
O que minha avó mais enfatizou nessa história foi a volta para casa. Mãe, ao chegar, abriu a porta do caminhão e saiu correndo pelo mundo, pela rua, aos gritos. Desde esse dia seu destino foi outro. Gritava por Noélia, Noélia Lúcia, sua filha de sete meses. Cadê Noélia? Cadê, gente? As pessoas na rua apenas olhavam aquela mãe completamente alucinada; pois não há resposta, nunca há, para esse tipo de pergunta.
Isso tudo foi antes de eu nascer. Mas vivi e vivo essa tragédia. Ela é contínua, pois que Noélia habita o ar, menina pequena de sete meses já olhando para a lâmpada, batendo palmas, com sua camisolinha branca. Noélia já ficando boa, graças a Deus. Para agradecer, só batizando-a na Lapa, abrigo do Bom Jesus. No caminhão de romeiros vão os padrinhos, os avós, os parentes, os amigos, todos conhecidos, do mesmo lugar. Três dias e três noites, muita poeira. Noélia mole, tossindo. Todos os passageiros sentados nos bancos de madeira, rezando.
Essa história nada tem de original, a não ser que é minha. Nessa história minha irmã Noélia chega à Lapa, doente. E o médico que a atende, um estagiário, a tira dos braços de mãe, levando-a pelo corredor. Volta, após quinze minutos, com a menina morta no colo, e devolve-a à mãe...
Poderia dizer que essa tragédia desviou muitos destinos. Inclusive o meu. Pois que mãe morreu ali naquele momento. A mãe que voltou, sozinha, no caminhão de romeiros, não era a mesma de antes. Nasci, portanto, alguns anos depois, com uma herança maldita, a herança do medo. Mãe e eu, andando pelo mundo, gritando. O medo para sempre nos perseguindo.



Fotografia: Romeiros na Lapa. Da esquerda para a direita, acocorados, pai é o segundo. Década de 1960. Fotógrafo desconhecido.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

cantando no escuro


pessoas são coisas fluidas, que meus sentidos jamais alcançam. Por isso, enquanto olho para você, busco sempre uma outra coisa; não o que sua roupa mostra, nessas calças já curtas; nesse paletó disforme, nessa camisa com cheiro forte de suor. Mesmo nas vezes em que você se veste melhor, com camisas de mangas compridas, calças novas e barba feita, não é isso o que vejo. Vejo apenas o que escorrega, um fingimento no olho esquerdo, o olho direito ficando cego; pernas bamboleando numa maneira esquisita de mostrar sempre o avesso. Nessa vigília morro aos poucos, buscando um único signo, um único, que possa dizer tudo.


Imagem: "Cielo del desengaño", por Thomas Guitar.
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terça-feira, 28 de julho de 2009

Quando a porta se abre


No divã aprendo a viver o desejo. Invento em mim mulheres cortesãs, antigas; ou Sherazade, querendo vencer a morte pelas palavras. O sultão apenas me ouve. Todas que vêm ali ele mata, mata como quem dá um remédio amargo. Todas para ele são crianças, mulheres infantilizadas. Quando a porta se abre, percebo que dentro mora a sedução, doença incurável. Que importa a dissimulação do inconsciente? Ele não cede, mais uma vez mata. Vive de matar crianças endemoninhadas. E é pago para isso: para criar e desfazer um indissolúvel feitiço. Não se cansa, não se cansa. A grande trança que ostento nos cabelos não lhe cega, não lhe compra. Minha roupa mais querida da infância ele alcança e ostenta no cabide. Minha roupa mais bonita, mais afoita, mais curta. Nua e desprotegida, invento mulheres antigas, vestidas de vermelho rubro, dançando tango, desesperadas. Nua, ao seu lado, invento malabarismos na linguagem, frases lapidadas, histórias que nunca, nunca se acabam.



Imagem: "Carrossel", por Renata Beltrão.
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mente solta


Olhe, estou fazendo o exercício que você mandou. E a primeira imagem que me vem à mente é um gramofone. Depois um elefante. É assim mesmo? É essa besteirada toda? Meu filho, eu não sou oriental, não sou zen, nunca serei. Quando você manda eu fechar os olhos e deixar minha mente se soltar, ela fica louquinha. Mente solta: eis a minha maior loucura. Agora mesmo: gramofone com elefante. Não, por favor, nada de simbologias. Eu sei o que você dirá ser um gramofone. Mas e o elefante? Seria o quê? Talvez essa minha leseira diante da vida. Essa docilidade amarga, pesada e leve ao mesmo tempo. Ai, quanta coisa clichê, repetitiva. Menino, por que insisto? Minha irmã disse que eu me curaria diante de um tanque cheio de roupa suja pra lavar. Ela está certa: melancolia é doença de lorde. Uma enxada, por favor; um sol torando... Sol torando me lembrou de pai. Ele sempre achava Triste Partida a música mais triste do mundo. Cantava com um choro tão longo como a música. Está vendo o que dá mente solta? Fui cair em Luiz Gonzaga. Vamos continuar. Ih, o tic tac tic tac tic tac do relógio está interferindo. E o ar condicionado vai esfriando minha barriga, meu estômago, de uma maneira esquisita. Por que você está com os olhos fechados? Pra que isso, Jesus? Sou eu ou você quem tem que fazer esse famigerado exercício? Por falar em olhos fechados, posso continuar com os olhos abertos? Detesto fechar olho, detesto. Me sinto ridícula fechando os olhos. E minha mente se solta sem precisar tanto ritual. Olho pro seus pés e me lembro que minha irmã um dia disse que você tem pés de santo. É, pés de, mal comparando, São Francisco. Uns dedos finos num pé pequeno e delicado. Minha irmã não tem jeito, esculhamba todo mundo. Se você soubesse o que ela já falou de você. Deixe pra lá, no final ela gosta desse cuidado que você tem comigo. Por que sei que esse negócio de exercício de mente solta, além de muitas outras coisas, é cuidado, é amor. Amor fraterno, adocicado, calmo, bom de sentir. Está certo, deixe eu tentar voltar a fazer o exercício. Minha língua se solta tanto quanto minha mente, esse é o problema. Porém, minha mente é pior. Minha mente na verdade é um turbilhão. Automóvel a mil quilômetros por hora, carro descontrolado no mundo. Se eu não freá-la, como posso ver as imagens que dela brotam em seus contornos? Um braço, um rosto, um boneco de sabugo de milho muito bem vestido, um sol se pondo, pé sangrando, uma camioneta azul, cacarecos num quintal, deixe eu ver mais... Eta, quanta parafernália inútil. Já chega, não?, esse tributo ao vazio.


Imagem: "Estilhaços 17", por Matoso Itabira.
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domingo, 26 de julho de 2009

Consulta


Estava tentando dormir quando ouvi um rebuliço na sala: muita felicidade. Felicidade é coisa zoadenta. As pessoas riam, festejavam. Vi que não iria conseguir continuar o sono; então prestei atenção no que acontecia. E o que acontecia era uma rodada de tarô. Uma colega lia para uma fila de gente. Vibravam com o que as cartas diziam. Cartas boas, muito boas, percebi, pois todo mundo ria de felicidade. Carente de boas novas, dei um pulo da cama e entrei na fila. Claro, queria felicidade também; quem não quer? Demorou pra chegar minha vez. Quando chegou, sentei, e senti que a cadeira estava quente; tantos passaram por ali. Sentei na pontinha, como faço quando isso acontece.
A colega pediu que eu embaralhasse o tarô. E partisse. E lhe entregasse, se não me engano, cinco cartas. Lembro-bem bem de três, vindas enfileiradinhas: a torre, a morte e o eremita. Ela olhou pra mim e disse que era morte; morte minha. E agora? Eu iria morrer? Já? Pelo jeito, sim. (Ah, Maca, me lembrei de você. Só que a cartomante lhe enganou, lhe falou que a vida lhe daria um homem lindo, enquanto que a vida lhe deu foi outra coisa.) Fiquei parada, olhando pra ela; e ela me perguntou se eu estava com medo. Disse "um pouco". Ela tentou contemporizar dizendo que talvez fosse morte de alguém próximo a mim, um parente, um amigo, um amor. Ai, doeu mais ainda. Me perguntou se eu estava indo a médico, fazendo exames. Respondi que sim. Perguntou se estava tudo bem. Sim, tudo. E a melancolia? É, continuo tendo. Então, cuidado, ela afirmou, minha intuição me diz que essa morte é suicídio. Suicídio? Aqui o drama deu uma pausa e eu respirei. Não, suicídio JAMAIS, falei alto. E agora? Como continuar a morrer? É, ela disse, pode ser então, mesmo, alguém próximo a você; mas é uma pessoa bem próxima, pois quando num jogo cai a torre junto com a morte não tem jeito.
Final da consulta. Olhei bem as cartas sendo arrumadas, guardadas por ela num pano marrom. No seu braço, simultaneamente, uma pulseira tilintava.



Imagem: "Ondas", por Macarenana:P.
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quarta-feira, 22 de julho de 2009

Isso é uma confissão

Vivi com ele sete anos.
O número sete, cabalístico, convence mais na vida que na literatura.
E o que estou contando é algo próprio da vida, nitidamente real. A literatura não conseguirá pernoitar o que aconteceu. Quero aqui tratar de confissão.


Na minha vida usei duas alianças. É, duas. Uma era meio moderna: tinha umas fissuras por fora, enfeitando-a. No dia em que a ganhei sonhei com um sapo. Nada demais. Havia lido Bufo e Spallanzani. Essa aliança viveu duas vidas diferentes. Na primeira de maneira desconfortável, pois que o dedo estava gordo. Na segunda, acabou caindo no ralo do chuveiro enquanto eu tomava banho.
A outra aliança que usei foi por demais solene. Tinha o nome dele por dentro. Nunca a tirei pra lavar pratos: sabia que era de ouro, não corria risco de desbotar. Ficava linda no meu dedo: vi isso numa remota fotografia, enquanto era homenageada na sala de aula. Um aluno me abraçava e a aliança ficou bem na frente, cheia de aura, iluminando a cena.


Exatamente sete os anos que vivemos. Por isso é confissão. Se fosse literatura, repito, não convenceria. Ficaria presunçoso, arrogante, pretensioso. E eu estou confessando: vivi com ele sete anos. Não há nada demais nisso, é cabalístico apenas, próprio da vida. E dizer isso não é coisa de mulher. Homem diria também. Ele, por sinal, diria melhor, e de maneira romântica, enquanto que estou sendo crua.


Aliás, quero, nesse relato, ser crua. Todo e qualquer romantismo me apavora. Vestida com um tecido cor de rosa, casei no fórum, num dia de semana. Ele chorou na hora de me dar a aliança. Nas fotografias, demonstro uma vida estranha nos olhos, uma vida que nunca tive; vida real. É, aconteceu de verdade, isso é uma confissão.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Um poema, nessa noite


MUNDO NOVO

José Paulo Paes


Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:
a urgência na construção da Arca
o rigor na escolha dos sobreviventes
a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias
a carestia aceita com resmungos nos últimos dias
os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.

E no entanto sabias de antemão que seria assim. Sabias que
a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de
espinheiro.

Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes, que ora
vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel
a terra mal enxuta do Dilúvio.

Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.



Imagem: "Os alfarrábios da terra", por George Sampaio.
(www.flickr.com)

Sob a lona de um circo velho


Não sei mais aonde colocar Aeronauta. Se deixá-la no mundo da lua, fora de minha casa, de minha vida, ou se continuo a abrigá-la em mim. Não sei quem é ela; sei que não sou eu. Mas me escondo por trás dela, me escondo de você. Se você me conhecer vai fugir de mim: vejo seus passos correndo pela avenida, no disfarce de estar sendo roubado. Você vai fugir. A cena se repetirá quantas vezes for preciso. Não tenho cabelos lisos como os dela, cabelos de índio. Meus cabelos crespos amedrontam. E estão sempre desalinhados. Tenho preguiça de penteá-los. Tenho um jeito carente que herdei dela, e você logo irá pensar que eu gostaria de lhe beijar. Você vai correr com medo, assustado que só vendo. Acontece sempre. Tenho garras invisíveis sobre os dedos, e eu nem vejo. Nem culpa tenho desse amor desesperado, guardado nos olhos, pedinte e mendigo. Tenho é raiva de ser o que sou, por isso aceitei esse contrato absurdo. Não sou ela, não sou. Sob a lona de um circo velho, guardo tudo tudo dentro de um baú. Qualquer dia desapareço.



Imagem: www.flickr.com

terça-feira, 14 de julho de 2009

Noturno da Solidão


Vou colocar um sininho de natal na porta. Com os dizeres: "Estou em casa".
Vou mudar a fechadura, colocar uma daquelas antigas, um grande trinco afetivo.
No meio da porta, e perto do trinco, um furinho para o cordão. Por dentro, o cordão grudado no trinco.
Vou mandar jogar fora a campainha.
Você chegando, é só puxar o cordão. A porta se abrirá.
Pode entrar, pé ante pé, para não acordar os monstros.
Te esperarei com chá. E sob a chuva esparsa, ouviremos Caruso cantar
Una furtiva lacrima.




Imagem: Lar, doce lar, por Leonardo Holanda.
(www.flickr.com)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Ela


Está comigo há muito tempo.
Quando fico em pé, as pernas são dela. Os pés meio tortos, parece que se desequilibram, numa brincadeira. As mãos puras, numa inocência que não cede.
1977, vestida de japonesa, segurando um leque.
Quando me deito e durmo ela aparece. Nos sonhos, seu vulto aquece, indulgente, meus braços, na direção dos lagos. Somos água, desde que chegamos, corpo molhado de alfazema, em manhã de novembro.
Ela é tímida e terrível.
Lasciva, como vidros partindo/vermelho/nos dedos.
Ela te quer. O próprio pai. O próprio irmão. O próprio tio. Não tem medo do frio que escorre em tuas costas, do medo que estanca tuas virilhas, noivo que nunca poderá ser da própria filha.
Ela te quer, invencível.
Quando fico em pé, ela se ergue. Minhas pernas a identificam, sombra infantil de uma maturidade adiada. Vestida de japonesa, os pés meio tortos, fecha o leque e posa, dissimulada, para o retrato.


Imagem: "Menina", galeria de Orxeira.
(www.flickr.com)

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Iniciação, Parte I


Estava no sindicato de pai quando vi o caixão roxo de defunto vindo de lá pra cá, acompanhado de um monte de gente. Me escondi debaixo daquela mesona grande do sindicato, chorando e tremendo. Dois dias depois surgiu a hepatite. Mãe não perdeu tempo, dizendo que foi por causa do caixão. Ela reiterava que criança não podia ver caixão, não podia. Por isso tanto nos poupou da morte, deixando-nos imperativamente longe, sempre longe, de velórios e afins; mas naquela segunda-feira o enterro passou bem perto, na porta do sindicato. Então, resultou nisso.
Daquele momento em diante fiquei fraca, amarela, meus seis anos aprendendo a usufruir as doçuras da doença: todas as regalias do mundo agora eram para mim. Poupada da escola, a professora fazendo visita, minha irmã me olhando na porta do quarto com um olhão de pena... Eta vida boa. Fui ficando cada dia mais amarela, cor que se cravou em mim com a força de um quadro. Olhava minhas unhas e mãos, tudo amarelo de dar gosto. Pra mim quanto mais doente melhor, pois assim teria muito dengo, e mil cuidados.
Essa fase é a que trago na minha memória com mais doçura. Acho que gostei de ter hepatite; o que não gostei mesmo foi de ter visto o caixão de defunto. Não, tal lembrança eu afugento, jogo pra longe, no meu baú de espantos. Ainda mais que essa aparição é alusiva para tentar esclarecer meus nervos fracos. Data daí a especulação familiar, o cuidado ostensivo em me guardar do mundo. Pai dizia, às escondidas, para os parentes, que eu era uma menina nervosa, estava sujeita à queda de nervos. É, queda de nervos - essa expressão é a cara de pai. Ele que também sofria de muito nervoso, juntamente com os irmãos, principalmente as irmãs, sempre descabeladas, gritando ai meu Deus no meio da casa cheia de gente. A loucura pairando, ainda que um pouco civilizada: nada de jogar pedras, até hoje nenhum parente jogou pedra. Mas a verdade é que sempre pairou, inquieta, e meus olhos assustados de seis anos já exprimiam o medo dela.
Com a doença veio minha primeira viagem de ônibus. Não sabia o que era isso, só de ouvir falar, ou de ver nas imagens do meu livro do primário. Lá em minha terra só tinha kombi. Diziam que ônibus era uma kombi maior, porém mais perigosa. Agora minha preocupação era ter que andar na kombi grandona e perigosa. O resultado desse medo deu-se em prenúncios de insônia às vésperas da viagem. No dia fomos para a cidade próxima, a fim de pegarmos o bendito ônibus para Salvador. Quando vi o bichão na rodoviária (nunca esqueço: era verde e espichado) comecei a espernear, falando na maior das alturas: "não quero andar de ombo não, pai" e todo mundo olhando e rindo. Essa foi minha primeira vergonha pública.
Queda de nervos, queda de nervos, pai sempre repetindo pra mãe a preocupação dele comigo. Mas, entre choros e novos espantos, lá ia eu para a capital. Chupando lima adoidado, na estrada toda. Dentro do ônibus vi que não era tão ruim assim, e tocava música. Até hoje identifico a música que tocava, aquela que fala do portão, de Roberto Carlos. Fui me embalando no colo de mãe, e cheguei a dormir. Lembro do colorido que tinha Salvador nos meus olhos de seis anos. Lembro sim. E no hotel uma televisão enorme, em preto e branco, coisa que até então não conhecia. Depois a rua, os médicos, os exames. E lima, muito suco de lima, e caixas e caixas de remédio. Comecei a colecionar caixas vazias, e fazer delas meu brinquedo preferido.
Na volta para casa, mais dengo ainda. Tudo que tinha no mundo era meu. Comecei a perceber a força que a doença traz a um vivente. Mãe comprava bolachas maria e quebrava-as no café, dando-me na boca. Ou então aquelas bolachas com formato de bicho. Eu adorava comer aqueles bichinhos, depois de bem molhados no café. Mas sempre colocados na minha boca pelas mãos de mãe. Adorava não ter que fazer nenhum esforço nesse mundo, e ganhar de quebra aquele dengo bom. Quem não estava gostando nada disso era minha irmã. Agora que ela tinha visto que eu não ia morrer, não tolerava aquela doença; queria reconquistar seu espaço, sua posição de filha mais velha e adorada.
Acho que foi para manter a atenção do mundo voltada para mim que eu nunca quis perder o epíteto de menina doentinha. Nunca fiz um esforço sequer para sarar. Não sabia que quem nasceu com algumas heranças não precisa se preocupar com isso. Eu não iria sarar nunca mesmo. Outros espantos viriam. Com noites de insônia; com telhados se transformando em caras estúpidas de gente; com todo mundo dentro de casa roncando; com o último morto da cidade rondando o quarto.
A hepatite foi apenas meu primeiro estágio.



Imagem: "Iniciação", por Luana Ferreira.
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segunda-feira, 6 de julho de 2009

fragmentos de uma história


Não sei se você se lembra, mas você era bem magrelo naquele tempo. Não tinha carro, mas uma bicicleta, com a qual atravessava a liberdade toda e vinha se encontrar comigo no campo grande. E sempre atrasado. E sempre suado. Lembro-me bem da paquera, antes do namoro, quando você me convidou pra assistir a vida imita a arte lá no glauber. Oh, sangria, Senhor, pois lá chegando vi na telona que era a vida imita a morte, um serial killer dos diabos. Você sempre assim, todo atrapalhado nos modos de agir. E com aquele cabelo cortado rente, soldado da primeira guerra mundial. Feio de doer. Não sei o que é que você tinha que fez com que eu retribuisse o beijo depois daquele filme medonho, já sentados no banco de cimento do campo grande. Beijo cheio de saliva, uma bocona grande a sua, nunca esqueci esse detalhe. Depois comprou uma pipoca pra mim e viemos andando de mãos dadas, feito casal dos anos cinquenta. Eu nem era tão nova assim, já entrada na casa dos vinte e mais um tantinho, e você muito falante, rindo demais com aqueles dentes amontoados. Claro, achei você horroroso, mas nunca fui radical com feiúras, gostava de dar chance a homens feios. Nutria dentro de mim a escandalosa e clichê esperança de que os feios são mais sensíveis e humanos. E você era terno, doce, e gostava de literatura.
Minha irmã ria muito de você; é, agora posso falar. Ela ria de sua bicicleta. Como é que o namorado vai se encontrar com a namorada de bicicleta, numa cidade grande dessa?, ela dizia rindo. O pior é que eu gostava demais de sua bicicleta. Achava romântica a sua pobreza. Ah, como amávamos aquele conto "Gazela", de Rubem Fonseca! Aliás, Rubem Fonseca foi presença imprescindível nas nossas cenas. Você se lembra daquela vez em que me internei pra fazer uma cirurgia, e que na hora da visita você chegou lá na enfermaria do hospital com um pacotão nas mãos? Todo ressabiado vinha me ver, e trazia de presente o que eu mais queria na vida, a obra reunida de Rubem. Eu nem aguentei segurar o livro, de tão pesado, e você enrolou ele todinho num papel de presente, meticulosamente colado, e me disse que levou a noite inteira fazendo isso. Eu não podia segurar o livro, por causa da cirurgia, e você o segurava para mim, passava página por página, enquanto eu lia. Depois aprendemos a ler juntos. E esse foi o maior dos meus enganos. Nunca, nunca poderia ter feito isso. Mas fiz, deslumbrada. Lia em voz alta, lia pra você; antes de dormir, durante as viagens, antes e depois do amor, em noites de tempestade, em manhãs de chuva e sol. Ao fazer isso, nem imaginava, eu perdia, definitivamente, o meu retorno para mim. "Sorôco, sua mãe, sua filha" li pra você num ônibus desconfortável, minha alma cantando e chorando, como a de Sorôco, e seus olhos molhados de água.



Imagem: "Histórias de amor", por Monique Souza.
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quarta-feira, 1 de julho de 2009

Aqui


No próximo dia 04 de julho esse blogue completará dois anos. Se fosse um menino, diria mãe, estaria grande, caminhando pela casa. Mas não é um menino. É alguém que fica comportadinho no seu canto, só esperando. Não dá nenhum trabalho, apenas me salva. Não me acorda de noite, muito pelo contrário, me ampara à noite, quando do lado de cá posso tocar a mão de quem não conheço. Aqui tudo é muito mais fácil, transito à vontade, dona de minha casa: coloco flores na entrada, tiro a poeira dos móveis, e nem preciso me preocupar se ele virá ou não. Aqui ele sempre vem, sim; aqui ele não tem medo: pousa na janela e ensaia um pulo, do sexto andar; ampara-se no fio de luz daquele poste suspenso e volta, como um trapezista, para mim...



Imagem: www.flickr.com