segunda-feira, 26 de abril de 2010

comoção


Tenho verdadeira comoção pelo ser humano. Sua arrogância, seu apelo, sua solidão. Todos são doces, até aqueles que te ignoram ou te odeiam. Todos, em algum momento do dia, se curvam, flexíveis, diante da dor. E todos, inexplicavelmente todos, estão definitivamente perdidos. É isso que causa essa minha enorme comoção, a ponto de eu chorar forte por alguém que vi uma única vez na vida. Ou de vibrar, feliz, ao conhecer olhos adolescentes sem qualquer mácula, completamente abertos ao que virá. Sentir pele macia de bebê derreter-se em minhas mãos também é comoção, ternura se espalhando, vontade de reter o curso do mundo, guardando o bebê no fundo das mãos. E quantos olhos verdes, pretos, castanhos, azuis andando por aí, meu Deus. Para que tanta gente nas ruas, nos apartamentos, nas casas, nas varandas? Para que essa povoação sem fim, se tudo um dia envelhece e sofre e desaparece? Oh, como não amar quem me odeia se seremos, juntos, passageiros de Caronte; e possivelmente contaremos uma anedota enquanto atravessarmos o rio, para assim quebrarmos o tédio de uma existência fleumática e solene, distante e perdida... Diga-me, como não me comover com o império dos homens, se fotografias de pessoas bailando sempre desaparecem no porão do castelo?



Imagem: "La gente../La people.." Por foxspain.
(www.flickr.com)

quarta-feira, 21 de abril de 2010

antigo e velho mar


Se eu fosse Rubem Braga iria botar lirismo nessa história. Como não sou, corro o risco de fazer notícia grande de algo talvez pequeno; porém, algo que só aparentemente beira à pieguice, à paquera vulgar. Mas o risco que se corre com a linguagem é o mesmo que se corre numa fila de supermercado cheio, às oito horas da manhã de um feriado de Tiradentes. Risco apenas de ver cestinhas e carrinhos repletos de mantimentos sem nenhum lirismo, fora uma ou outra melancia luzindo, ou uma maçã explodindo de vermelho, à espera.
Na minha frente três senhores calvos, com grossas alianças, que, mesmo carregando o mundo todo, ainda na fila iam abastecendo seus carrinhos. Suas mulheres àquela hora deveriam estar dormindo, enquanto eles compravam frango, sorvete de chocolate, queijo, peixes, frutas, macarrão, leite, enlatados, pães. Nunca vi tantos senhores juntos, numa fila indiana, preparando o regalo da família que, provavelmente, àquela hora, dormia. Lá ia eu no meio deles.
De repente ouço uma voz sobre a minha cabeça:
- Você tem esse cabelo enorme há muito tempo?
Me viro e vejo um senhor alto, calvo, com um boné branco e olhos vívidos, de um verde que foi forte e hoje está esmaecendo.
- Tenho sim.
- Há mais da metade de sua vida?
- Sim, desde os dezessete.
- Nunca cortou?
- Nunca.
- É algo como parte de si?
- É.
Em nenhum momento ele disse que meu cabelo era bonito. Apenas estava entusiasmado pelo tamanho dele.
- É muito difícil hoje existir moças de cabelos compridos. Todas querem seguir a moda.
- É verdade, digo eu, sem saber o que dizer.
- Você o cortará um dia!. Afirmou categoricamente.
- Não, nunca o cortarei.
- Tem certeza?
- Sim.
- Por quê?
- Não sei. Dizem que é porque sou filha de Iemanjá, respondi.
Aí ele falou algo que achei tão brega, tão fora do script, que morri de raiva.
- É filha mesmo. Se você tivesse na praia, jurava que era a própria.
Virei e olhei o seu rosto, buscando a constatação do sarcasmo, da paquera sem graça, do verso de quinta categoria, mas não vi nada disso: vi apenas dois olhos verdes, tristes, se apagando.
- Você acredita mesmo em Iemanjá?, ele perguntou, sério.
Não deu tempo pra responder. O caixa me chamava insistentemente. Com um tchau saí correndo com minhas compras, numa pressa desavisada de quem corre do mar, de um antigo e velho mar, repleto de sargaços.



Imagem: "O mesmo velho mar", por Cláudia Dias.
(ww.flickr.com)

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Canto em Dor Maior


Sou uma total desequilibrada, gritando por amor. Abram suas portas, vejam minha loucura, meu cabelo desgrenhado, minhas unhas sujas. Abram suas portas, me acolham. Me coloquem no colo, matem meus piolhos. Estou esmolando, sim, amor. Como não se tem vergonha de esmolar pão, moeda, comida, estou na mesma condição. Tirem esses arames das mãos, eles podem me ferir. É apelação de verdade, estou apelando sem qualquer vergonha. A flor antiga, anônima e discreta, se despetala em desespero, com enormes elefantes sobre os dedos: dóceis, ternos, feito abelhas velhas, doidamente tontas. É uma cena tosca, é uma cena forte. Querem fugir dessa cena? Fechem suas portas, tampem os ouvidos, aqueçam a alma; e vejam como sumiram as borboletas; todas sumiram, sem festa e sem gritos, pois que não são dadas a pieguices; são elegantes, líricas, serenas. Mas desapareceram. Nunca mais passearão por teus cabelos. Não sou nenhuma borboleta, sou um besouro feio, um besouro grotesco, que nunca desaparece. Zunindo o absurdo, a mendicância, o nojo, toco teu rosto como muitos, impossíveis beija-flores.


Imagem: "Delírio em azul", por Maria Fernanda P. Barreira
(www.flickr.com)

domingo, 18 de abril de 2010

Banho veneno



Ricardo Nonato


Por não querer-te
Sou paredes
E debaixo dos meus pés,
Dormem cães famintos.

Nesse vago estreito
Devoro tempestades.

Meu grito
Nas águas é
Lembrança antiga.

Ainda trago nos lábios
o veneno do banho.
Minhas cabeças traidoras
Devorando ossos,
Devorando-me sempre.
Sou carne partida
Nos dentes.

...

Numa cilada maldita
Afogo marinheiros perdidos.
Sou o caminho do medo,
O medo.
Terror dos aflitos.
Laceração lavada
No salitre escuro
Do mar.

Minha beleza
É fome.



Imagem: "IMG_3470", por Ivan Monticelli.
(www.flickr.com)

quinta-feira, 15 de abril de 2010

o vento, a música de fundo, o amor


Este vento não leva apenas os chapéus,
estas plumas, estas sedas:
este vento leva todos os rostos,
muito mais depressa
.*

Depois de assistir "Tempos que mudam" (2004), não há como não inquirir nosso rosto mudado, nosso amor que passou, nos rostos sólidos e ao mesmo tempo danificados de Catherine Deneuve e Gérard Depardieu. Não vou resenhar o filme, vou apenas pensar, rapidamente, no amor e no vento.

Não, não podemos segurar o nosso rosto:
as mãos encontram o ar,
a sucessão das datas,
a sombra das fugas, impalpável
.*

Se a memória é a fé em diferença, o que é o amor? Não há ninguém que responda, talvez somente o tempo - que constrói linhas interrogativas entre nossas sobrancelhas; e faz um vinco perto da boca, e outros ao redor dos olhos. O tempo dá uma resposta muitas vezes amarga: sarcástico, faz do grande amor a rotina incestuosa e anti-lírica de irmãos. O tempo também promete ficção: escreve um pacto de mentira com o sonho e lhe permite, lívido, esperar.

Conta as tuas histórias de amor
como quem estivesse gravando,
vagaroso, um fiel diamante.
E tudo fosse eterno e imóvel
.*

Impossível falar de amor, portanto, sem uma música de fundo. A música que celebra o sonho, a invenção, a esperança contínua. Como a literatura, o amor atravessa o tempo à escuta, sempre à escuta. E ouve os diálogos errôneos, enganos sob enganos, edificando dunas que o vento espalha.


*Trechos do poema "Rua dos rostos perdidos", de Cecília Meireles.
Imagem: www.videomais.com.br

segunda-feira, 12 de abril de 2010

canção para ela


Tecer teus dedos, menina. Tuas unhas sujas, cavando o chão do quintal. Aprendendo as vogais, escrevendo teu nome no Certificado do Dia das Mães. O vê de vilma era tortuoso, o a de ângela, quadrado. Era uma letra torta, enviesada, tal qual teus dentes de leite falhados. Tecer teu corpo, gordo, rechonchudo. Teu cabelo nos mundos, quebrando pente, amolecendo, à revelia, a mão de quem o penteava: mão de mãe; calosa, cheirando a cebola, alho, brilhantina. Trançar de novo teu cabelo, menina, rapunzel sem príncipe, pois que o inverno logo vem, e cabelo despenteado é algo melancólico. Tecer, tecer. As roupas também, de organdi azul, para que possas ser baliza, à frente da banda de música. Tecer tua dança, finalmente orquestrada, como se fosse para sempre vida. Como se não fossem embora nunca, nunca, tecer teus pés na calçada, no alvo certo da amarelinha, na queda lírica do patim. Imobilizar, sim, as nuvens, menina, para que não possas sair...



Imagem: eu, aos sete anos. Fotografia de Mozart Santana.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

no baile


O que me levou a escrever foi a sensação de chegar por último ou chegar primeiro. Nas duas extremidades você está sempre só. Por isso comprei minha primeira máquina de escrever: era preciso encontrar alguém com quem ficar. A máquina era como um tamborete, quando todos os lugares estavam ocupados lá estava ela me esperando. Portanto, meu tamborete me salvava do desconforto de ser vista em pé, sozinha, sempre sozinha. Sentada, só mesmo nos infinitos chás de cadeira que tomei em bailes. Neles até hoje espero o delicado cavalheiro a solicitar-me uma valsa, um tango, um passo de discoteca. Enquanto espero, ponho a minha máquina no colo e observo a festa, os cabelos, os passos indo de um lado a outro do salão. Tudo indica que há felicidade no mundo, porque senão como aquele casal conseguiria sintonia suficiente para não se estatelar no chão. Nunca me esqueço do dia em que me rebelei e saí da cadeira a buscar um cavalheiro, um par. Escolhi o mais bonito, o mais garboso, o mais cortês. Só que eu não sabia para onde ir, como me movimentar. E ele até que tentou, coitado, mas meus passos não lhe acompanhavam. Ali descobri que é mais fácil escrever. Ponho a dor para dançar...



Imagem: "Museo del baile flamenco - Sevilha", por Wilson França.
(www.flickr.com)

sexta-feira, 2 de abril de 2010

guardar o dia


Telefonei pra mãe e ela me diz que está "guardando o dia"; ou seja, hoje ela não costura, não borda, não limpa, não ouve música. O que estava fazendo naquele momento? Folheando um livro velho de receitas. Comprou sim um peixe, mas se arrependeu, deveria ter comprado um frango. Carne de frango pode, é até melhor que peixe, diz ela. Oh mãe, onde ficaram os bolinhos de bacalhau? Não perguntei isso, nem sei se ela se lembra ainda deles. Em nossas solidões sempre conversamos coisas alegres. Ela ri, como sempre riu. Me pergunta o que irei comer. Minto, de maneira descarada. Sempre gostei de mentir pra ela. Mentir pra mãe é algo sagrado. E não digo que não guardarei o dia; até tento, mas não consigo mais me conectar com os santos. Meu espírito virou uma bola de pano, dura e sem graça. Mas garanto a mesma inocência da primeira eucaristia: simples curiosidade com o gosto da hóstia. Juro que eu gostaria de guardar o dia: conhecer a felicidade nos pântanos. Não é assim que diz a igreja? A felicidade no sofrimento? A ressurreição vinda de pregos no corpo? Porém, a verdade é que sempre preferi o Jesus que estava na festa com Maria e transformou água em vinho. Veja, mãe, o quanto isso é lírico.



Imagem: "bodas de caná", galeria de manuelito cadenas.
(www.flickr.com)