segunda-feira, 26 de março de 2012

para tempos difíceis


Banho de sal grosso. É o que logo recomendam para tempos difíceis. Mas a receita ideal mesmo seria esta: recolhimento. Porque na ida à loja em busca do sal grosso, muitas artimanhas do destino estão lhe esperando. Então, recolhimento total para tentar compreender essa contramão, essas águas que não descem, mas sobem enquanto você tenta andar sobre elas: redemoinho de água, eis a imagem mais patética e trágica que ilustra tal momento. Falar? Para quê? A coisa piora. É melhor ficar em silêncio total. Apagar o abajur da sala, do quarto. Desligar a televisão, o rádio, o som. Desligar a campainha e esperar Deus. Ele por certo virá. Você perguntará sobre essa colisão e não ouvirá nenhuma resposta. Deus não responde; ele é o maior silêncio do universo. É preciso muita paciência com ele.

sábado, 24 de março de 2012


Um dia se cansa de insistir no amor. As delicadezas dos bordados em iniciais se esboroam, os enxovais viram pano de chão, e a gente vai arrumar o que fazer. Os momentos bons seguem para o álbum de figurinhas, e a espera que o tempo se instale, corrosivo, colocando pó nas lembranças, é o que o corpo cansado deseja, com insistência. Depois, a ampla, a grande, abundante solidão. Solidão inteira: de casa grande sem eco, de pratos sem bocas, de redes paradas. Depois, o sono, a letargia, o abandono. Sim, porque todo amor que acaba deixa a sua marca de abandono dilatada. Por que todo amor que acaba é de um mau gosto e de uma dor insuportáveis. Por que o amor sempre pede muito e não dá nada, nada, nunca.

sexta-feira, 23 de março de 2012

trôpego cordel

para Carlos Barbosa


Era o mesmo banco de antanho
Conta-se mais duzentos anos
Em que alguns homens entraram
com lâminas e espadas
Repetindo, bravos, as cenas
num encontro em que eu estava.

Eram muitos; todos armados:
Um, inútil criança,
com capuz de homem aranha.

Até então, nada novo
Nem o povo, que da arena
apostava, eufórico,
em quem perde, em quem ganha.

Só que as antigas espadas,
com o passar de tantos anos
se transformaram em fuzis,
metralhadores com artífices,
golpeando nuvens brancas.

Nessa hora, o meu corpo
descobriu-se morto, como antes
E doloroso curvou-se
em peditório aos santos.

E meu corpo não era o único
que compunha tão encontro:
Eram vários circunstantes,
Pois a barca de Caronte
precisa estar lotada
para rumar ao Aqueronte.

E o povo na arquibancada
Aplaudia, encantada,
seus representantes.

Tudo o que se viu e viveu
naquela manhã de fevereiro,
é só um trôpego cordel.
E incólume, aqui, meu corpo
Testemunha sem troféu.

quinta-feira, 22 de março de 2012

o pior dos meses


Eliot, março sim é o pior dos meses.
Nele se calam dores estranguladas
no sótão amplo, escuro da casa.
Rangem portas e mais portas
sem a presença sequer dos mortos:
Um silêncio dos mais claros
invade o estábulo, o quintal,
e nele não se ouve nada.
Nesse mês absurdo, o ouvido
se faz duro, e as promessas
quebram-se, inválidas.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Da série: poetas que morrem cedo


Manuel Bandeira, num de seus textos sobre o poeta pernambucano Carlos Pena Filho (que, pena, se foi aos trinta e um anos de idade), chama a atenção para a excelência do poema abaixo: a iniciação sexual de um adolescente "contada" através da excelência da palavra poética.

Retrato breve do adolescente*
Carlos Pena Filho

Aos dez anos, tinha apenas
um catecismo discreto
e os olhos presos nas alvas
e nudas formas do teto.
Às vezes, em dias claros,
em tardes de sol concreto
retirava os olhos mudos
das alvas formas do teto,
sonhara tempos e navios,
mas seu sonho predileto
estava nos negros olhos
que habitavam seu afeto
e que ele há tanto buscava
longe das formas do teto.

Um dia, a chuva imprevista
que às vezes sai do verão
dormiu sobre o seu telhado
molhou-lhe a imaginação,
tempo em que foi visitado
seu humilde coração
por Isa, Rosa e uma vaga
Maria da Conceição
e aquele mais do que nunca
herói do sonhar em vão
foi dormir com todas elas
nas curvas da própria mão.

Num dia de aniversário
usou (a primeira vez)
solenes calças compridas,
gravata alegre. Era o mês
em que nos campos mais frios
e em outros campos, talvez,
inauguravam-se as rosas
imitando a quem as fez
e aquele mais do que nunca,
latino por sua tez,
apascentou em silêncio
as coisas que nunca fez.

Depois, a moça morena
que em sua rua morava,
embora sendo tão pouco
para quem tanto aguardava,
mostrou-lhe: o esperar é vão.
E veio o beijo roubado
na penumbra do portão.
Enfim, na noite mais forte
que houvera em todo o verão
ambos foram dormir juntos
aquém das curvas da mão.

Aos dezoito olhou pra trás:
perdera-se todo o afeto.
Olhou para a frente e viu
O nada por objeto.
Olhou pra cima e sorriu
das alvas formas do teto.


*In: PENA FILHO, Carlos. Melhores poemas. 4a edição. São Paulo: Global, 2000, pp. 27-29.

sábado, 17 de março de 2012

desenhos de Deus


Os desenhos de Deus no meu destino
Eu bem os decifro à minha maneira:
rodopiando qual vento em saltos
tentando apagar esse rastro no chão
esse rastro que não fiz.

Os desenhos de Deus no meu destino
São sempre cruéis: homens gargalhando,
ébrios, num bar de estrada
Crianças caindo, sem asas
que as sustente.

Os desenhos de Deus no meu destino
São sempre repetidos: sempre.
E eu bem os decifro como posso:
tentando apagar esse rosto antigo
Decomposto, de mais de meio século.

Os desenhos de Deus no meu destino
são sempre o mesmo tédio: e o assassino
foge com um lenço na mão.
Não há originalidade nesses desenhos
São imitações de outros que já vi.

quinta-feira, 15 de março de 2012

autorretrato


Nunca consegui ser vaidosa. Não gosto de salão de beleza. Muitas vezes escondo, como posso, as unhas dos pés. Tenho preguiça de ser bonita. Deve dar muito trabalho. Por isso deixo os cabelos quebrados. O vento resseca-os como pode, no seu trato duro com o que é áspero. Agora eles caem, caem, nesse meu outono bastante particular.
Não tenho a menor paciência para frequentar provadores: as roupas entalam no pescoço, eu começo a me enervar como bicho preso. Saio de lá sempre com o mesmo vestido, velho e suado de cansaço. Quanto aos sapatos, são sempre os mesmos; não tolero vendedores de loja descendo escadas com caixas e mais caixas nos ombros: dá muita pena deles.
Não tenho vaidade não, moço. Não busque perfume no meu pescoço. Nem enfeite nos meus braços. Nem tatuagem, nem pulseiras. Sou mulher apenas; feminina.

segunda-feira, 12 de março de 2012

perdoe-me, minha avó

Perdoe-me,
minha avó,
o olho grande da menina
diante de tua boneca
batizada e crismada
como se gente fosse,
cheirando a alfazema
sentada no guarda-louça.

Perdoe-me,
minha avó,
a usura da menina
diante de coisa tão linda:
Creuza, tua filha, boneca amada,
de cabelo penteado
e roupas da moda;
de sapatos pretos e meias
de renda.

Era a tua prenda mais querida.

Perdoe-me,
minha avó,
a ganância da menina
que tinha tantas outras
bonecas, ainda mais finas
Mas queria era aquela:
aquela, a rainha.

Perdoe-me,
minha avó,
Pela tua renúncia
Dando à neta pidonha
o que era mais precioso:
tu que já sabias
de tantas perdas nesse mundo.

Perdoe-me,
minha avó.
Sei que agora estás
no céu das bonecas
Ladeando Creuza, ressuscitada
dos maus tratos da menina;
Juntinhas, duas rainhas
sentadas no guarda-louça.

sexta-feira, 9 de março de 2012

tempos cruéis

Nesses tempos nossos, ninguém tolera o sofrimento. É providencial que você seja sempre alegre, afinal só quem tem pensamento positivo prospera. Depressão? Nem ouse, esconda-a, esconda seu rosto choroso, jogue um lençol sobre seu corpo. O mundo exige que seu braço seja forte, que sua psique seja vazia, que você ostente apenas um largo e inexpressivo sorriso na cara. As doenças do espírito não são propícias para os tempos atuais. Afinal, as igrejas são inúmeras, os centros terapêuticos inúmeros, os livros de auto-ajuda ganham o mundo. Onde pode haver um lugar para poder ser triste ou estar triste em paz? Nenhum amigo mais dá seu ombro, como em outros tempos; apenas diz com autoridade que é preciso que você saiba que existem pessoas em piores situações; seu ex-psicanalista diz com a arrogância disfarçada em pedantismo que já passou da hora de você se livrar da carência do outro. Na verdade mesmo, o que percebo com tristeza absoluta (se me permitem) é que a ditadura do egoísmo colocou no mundo seres petrificados e terminologias baratas de felicidade, salvo um ou outro ser que ainda conhece profundamente a linguagem do consolo e da solidão.

quinta-feira, 8 de março de 2012

nós, os sensíveis


Onde nós, os sensíveis,
nos abrigaremos
Quando o mar invadir
a nossa sala, e eles, os visíveis
se apresentarem
com roupas aquáticas,
e coletes submarinos?

O que faremos nós, crianças
que me ouvem tão longe,
O que irão fazer de nós, sensíveis
como vós,
que sempre olhamos adiante,
acreditando em tudo?

Em que peito nós, os sensíveis
nos abrigaremos
quando o abandono se fizer lei
E os fortes homens visíveis
se apresentarem frente ao mundo?

terça-feira, 6 de março de 2012

sempre lúcidos


Sei agora: estaremos lúcidos
na hora de morrer.
E no instante preciso
pensaremos muito
a respeito disso.
Lembraremos os últimos acertos
ao telefone,
Nossa última compra,
No instante, este, que se espreita
Indubitável
Como nenhum sonho.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Março chegou quieto, como uma casa grande e perplexa. E eu quieta, andando por ela, pé ante pé. Não sinto mais palavras me habitando, casa assombrada distante do mundo. Estou muda e não consigo meditar. Tenho saudade de antigos amigos, e de uma cidade antiga onde o único roubo que presenciei foi de uma sandália no batente da porta. Hoje tenho presenciado roubos maiores e não consigo atinar bem com isso. Naquele tempo em Andaraí quem me metia medo era Pastinha, doido pacífico, que andava pelas ruas segurando uma pasta ensebada. Andaraí se perde numa bruma triste, distante e inalcançável. Não existe mais doido pitoresco, não existe. Nem cidade pitoresca. Me desculpem a falta de jeito, ando por demais comovida nesses dias.